Sunday, May 19, 2013

Música estranha

O que leva um compositor a escrever música que é considerada estranha por um grande número de pessoas?
Ele quer ser deliberadamente desconhecido ou apenas fazer pose de diferente da maioria das pessoas?


A música contemporânea não é só o que toca na rádio nos últimos anos. Não é só formada por Katy Perry, Chico César, Madonna, Funk, Radiohead, Roberto Carlos, Jazz, Adele, Paula Fernandes ou tantos outros. Existe uma enorme vida musical além desses nomes tão conhecidos. Música contemporânea também é o trabalho de incontáveis compositores que estudam e praticam a música de concerto (também chamada de música clássica), seja exclusivamente ou seja misturada com a música popular, a música tradicional e/ou música folclórica.

Esse jeito de fazer música sofre influências diretas da herança dos compositores dessa música de concerto, tantos compositores quanto possível descobrir ao longo de toda a história da música (e essa só é mais ou menos relatada dos gregos até os nossos dias, são influências tanto Beethoven quanto Debussy, Bach, Gesualdo (século XVI) ou Stockhausen.
Esse tipo de música contemporânea a que me refiro usa maneiras, sons, acordes e possibilidades de um jeito bem diferente dos que foram usados na música clássica ou que são usados em muita música a que chamamos popular. Sempre com a vontade de cada compositor de criar um universo particular seu.
Muitas vezes é uma música chamada de atonal, já que elas muitas vezes não tem Tom, mas colocá-las todas sob um mesmo nome não é fazer justiça.

Mas porque essa música é estranha em primeiro lugar?

Porque essa música não tem melodia, harmonia, pulso ou até afinação? Música é uma construção de uma cultura (sendo a cultura globalizada uma cultura de grandes proporções com variações internas, mas na qual acontece uma frequente troca de experiências). Cultura é algo que todos temos desde que nascemos, pois seja qual for alguma cultura sempre nos rodeia, e ela pode vir a incluir outras culturas quando se conhece outras pessoas e outras realidades.
Então, por consequência, se você tivesse nascido noutra época ou noutro lugar, estranha seriam as músicas que se ouvem no rádio daqui.

Que o diga a música européia religiosa do século 14...
Jacopo da Bologna
Jacopo da Bologna Madrigal



Ou a música dos pigmeus da África central. (Fonte: The Baka Forest People)

Então, descontextualizada (ou contextualizada), toda música é estranha.

De uma maneira muito oportuna o compositor Phillipe Manoury diz:
"Como a linguagem, a música se apreende e se domestica pelo costume, a repetição, a aprendizagem, e nada lembra mais a um ouvinte ao escutar um estilo de música totalmente novo para ele que uma pessoa em um país no qual ela não compreende uma palavra sequer."

Interessante notar que também diz algo parecido o autor Aaron no livro A Filosofia da Música - tema e variações quando comenta que a escuta de música é uma atividade intelectual humana como qualquer outra e que também se exercita.

Isso pode nos ajudar a conceber a diferença entre um estilo de música conhecido, como a música tonal tão comum na nossa casa, igreja, supermercado e etc., e uma música de concerto que não nasce para ter o número de ouvintes que a música popular tem.


Um outro exemplo interessante dado pelo compositor Philipe Manoury na forma de uma pequena e selecionada história das rupturas feitas por diversos compositores desde que podemos recordar...

"Os [compositores] pré-clássicos abandonaram a polifonia barroca, Beethoven abandonou a melodia em prol de pequenos motivos, Wagner abandonou a ópera em número e o bel canto, Debussy abandonou o canto e os encadeamentos harmônicos tonais, Stravinsky abandonou as delícias do impressionismo, Schoenberg (mas já Liszt anteriormente) abandonou o sistema tonal, Varèse abandonou as alturas temperadas, a geração de compositores de Darmstadt abandonou a "tudo", Xenakis abandonou as linhas musicais em prol das massas sonoras, Cage abandonou a noção de obra, a música eletrônica abandonou os sons instrumentais, Lachenmann abandonou as alturas... Esta é a antologia destes ilustres e notórios abandonos que, a cada vez, provocaram nostagias e frustrações, e fizeram a delícia dos mal humorados."


Dessa maneira vários compositores foram subversivos na época que realizaram suas obras. Para saber realmente é preciso perguntar a cada um.


Mas e nessa música dos últimos 100 anos, o que aconteceu com a melodia?

Nesse momento é interessante experimentar ouvir alguns trechos de música nem que sejam curtos. Para tentarmos apreciar um pouco de como uma melodia pode ser transformada em outra possibilidade.


Na musica contemporanea se procura (se procura ouvir e sentir) outra coisas, diferentes das que foram utilizadas outras vezes. A falta de pulso ou harmonia normalmente acontece para poder dar espaço para outra coisa nos guiar na escuta.
Procurar por melodia e harmonia conhecidas em qualquer música que ouvirmos é um desserviço à chance de ver e sentir coisas diferentes das que conhecemos. 

Vamos tentar perceber outras coisas além de uma melodia. Nesse caso uma melodia tonal razoavelmente "nossa conhecida", embora seja inédita.


Se antes essas notas soam assim com um sentido de linha muito forte tendo começo meio e fim,

Trio
Melodia Tonal para trio
podem vir a soar assim quando transformadas de uma maneira simples para evitar a sua "cantabilidade".

Trio 2
Melodia Espalhada

Ou seja se antes a melodia soou como uma linha agora parece mais um tecido de pontos mais espaçados. Isso alterou a textura desse trecho de música. A única coisa que foi mudada foi a localização da oitava de cada nota. Com o objetivo que duas notas vizinhas virassem duas notas distantes. Como isso foi feito em todos os intervalos ocorre a quebra da linha melódica e se descobre uma nova possibilidade.


Se pudermos ir mais longe e alterar a harmonia conseguimos então outra "cor" para essa textura. Agora ao transformar a harmonia que antes ainda era tonal para uma harmonia modal pentatônica.

Trio 3
Melodia Pentatônica

Finalmente buscando uma terceira harmonia, agora sem tonalidade, com o objetivo de ressaltar os intervalos menos utilizados nas harmonias anteriores, as segundas menores e maiores e quarta aumentadas.
Em todos os exemplos o ritmo foi sempre o mesmo e graças a ele mesmo nos exemplos não tonais conseguimos ter alguma sensação de final de frase.

Trio 4
Melodia Atonal


O que era uma linha "natural", até cantável (ligação forte com a voz), agora é percebida por outro lado. Pela cor geral que agora cria. Então é possível dar várias cores só trocando essa harmonia.

Outras facetas tão normais da música podem ganhar outra cara e então percebemos que os fundamentos da música não são sempre a harmonia, ritmo ou melodia tonal.

Sim, você pode até dizer que a música desse último exemplo é estranha ou feia mas então relembro o que disse lá em cima: "se você tivesse nascido noutra época ou noutro lugar, estranha seriam as músicas que se ouvem no rádio daqui." E ouvir música é treinar não só o ouvido, mas também o pensamento e o sentimento.



1 comment:

Anonymous said...

seu texto é muito bom. cultural e informativo, infelizmente todos os links referentes as amostras sonoras do conteúdo e tema do texto, não estão ativos. (desempolgação total, já que o texto nos leva a querer ouvir. Mas...
Parabéns pelo blog.
fariasnetpe@gmail.com